quinta-feira, 30 de março de 2023

A perfeição no imperfeito

Olá, Visitantes.

O criador da Mafalda, saudoso Quino que nos deixou em 2020, deu vida a uma imensa gama de situações cotidianas com seus personagens, sempre com a mordacidade, riqueza e finesse do seu estilo que marcou gerações indelevelmente.

Em uma de suas tirinhas, ele mostrou o início do dia do pai da Mafalda. No 1° quadrinho, ele diz: "Uma barba bem feita!"; no 2°, beija a esposa: "Um café maravilhoso!"; no 3°: "Um bom cigarro!"; e no último, trêmulo e com a porta pra rua entreaberta, olha para fora e diz: "E é aqui que a vida deixa de ser como nos comerciais!". Perfeito ! E tantas outras sobre o mesmo tema como a tirinha abaixo.

Propaganda é o esquema que exalta a perfeição no imperfeito e maquia as pífias qualidades do simplório, tornando as quimeras, fadas; os teratos, Apolos; os inúteis, imprescindíveis; os nulos, desejáveis; os venenos, elixires. Nela, viver é uma eterna consumição em busca da consumação da felicidade que nunca é possível porque ela é oscilante, dinâmica, nunca estável. Nesse moto-contínuo, as angústias da eterna insatisfação geradas pela famigerada glorificação do "Sim ! Você pode ! Você consegue !" vão viciando a humanidade, levando-a a necessitar de cada vez mais altas doses de ilusões, hipnotismos e sonhos.

Segundo a sentença do rabino Reichhorn lá no século 19 (citada por Goebbels naquele antológico discurso): "Ao repetir sem cessar certas ideias, a imprensa consegue o fim em aceitá-las como realidade". A propaganda consegue fazer com que a alienação e o comodismo das massas atinjam um patamar inaudito, tornando-se a maior válvula de escape da sobrecarga de excrescências fomentadas pelos grandes parasitas que entopem cada reentrância de suas vidas física, mental e psíquica. Ela tem a premissa de colocar tudo etereamente ao seu alcance, um engodo sádico e cruel, mas feito de tal maneira, com tamanha sutileza e agradabilidade que o povinho se deixa conduzir por suas amáveis promessas de realizações de desejos e necessidades que nem têm razão de ser.

Usando um exemplo recente: o banco Bradesco utilizou a família futurista Jetsons para mostrar uma "super modernidade" que facilitará imensamente o cotidiano. Aparelhos (celular, relógio,...) que fazem pagamentos e outras operações financeiras sem necessitar de dinheiro, nem cartão, e tudo estará à mão, num clique ou no viva-voz. Ou seja, "redução das dificuldades, das preocupações, das tensões, evitando esquecimentos, complicações, necessidade de atenção e vigilância,...". Como toda e qualquer "boa propaganda", promessas de FACILIDADES E SIMPLIFICAÇÕES !! "Não se estresse com situações comezinhas, repetitivas, que podem ser resolvidas por nossos agentes, aplicativos, débitos automáticos, etc !" E desta maneira é que eles vendem a felicidade e a satisfação.

Mas uma simples racionalização esboroa esse castelinho de cartas: O QUE SUSTENTA ISSO TUDO, MANTENDO-O EM FUNCIONAMENTO? Resposta óbvia: o povinho (esmagadora maioria da sociedade) que APARENTEMENTE é o alvo da propaganda; o povinho que tem em seu cotidiano todas as dificuldades que ela promete eliminar; o povinho que não recebe nenhum aporte financeiro para se valer das benesses futuristas apregoadas por ela; o povinho escravo anestesiado e moído pelo mó do sistema capitalista cruel e cruento, que trabalha opressivamente. O verdadeiro e único alvo dessa propaganda é QUEM TEM CAPITAL: as elites, a burguesia e as cracas atreladas ao seu transatlântico. Somente elas (e honrosas exceções), essencialmente rentistas, é que podem viver plenamente as propagandas que criam.

Caso o povinho tivesse a mínima condição de utilizar tais benesses, ele automaticamente pararia de servir de base, capacho, burro de carga e se juntaria alegremente ao parasitismo dos "bem nascidos". E nem é necessário dizer que esta situação seria (e é) terminantemente proibida pelos supremacistas, pois somente essa colossal base de miseráveis iludidos é que os mantém vivendo como semideuses. Manipulando com propagandas os desejos de seus escravos, tudo pode ser direcionado ao bel prazer dessa corja bilionária.

"Se o amor só nos causa sofrimento e dor, é melhor, bem melhor, a ilusão do amor" (Mário Lago e Custódio Mesquita). E a humanidade está sendo paulatinamente programada a aceitar a realidade dessa ilusão. Mas para todo grande prazer, existe uma grande dor. Quem acredita que uma vida totalmente estável é sinônimo de felicidade e realização pessoal não passa de um perfeito candidato a sociopata. Exceto uma necessária estabilidade financeira (a mais basal delas), todas as outras estabilidades são armadilhas, bolas de ferro, abismos mentais e emocionais que geram vazios cada vez maiores, depressões e fantasmas que vampirizam nossas almas.

"Se o que você quer em sua vida é só paz, muitas doçuras, seu nome em cartaz" (Raul Seixas), você está fadado a um niilismo atroz, a vegetar, a vagar como um zumbi. O que realmente importa são os meios, não os fins. Encontrar em cada jornada alegrias, bem estar, razão de viver, perseverar e prosseguir nos enfrentamentos dos desafios, dificuldades, agruras, é o que sempre nos manterá saudáveis em todos os níveis e nos levará às fugazes plenitudes, a essência do bem viver. Lembrando que "pedras que rolam não criam lodo", porém "a vida necessita de pausas" (Drummond). Equilíbrio sempre é a regra. Cada qual que determine o seu.

Fácil vem, fácil vai e não deixa nenhuma boa lembrança ou satisfação. Apenas e tão somente uma sensação de enchimento inócuo, insípido e inerte. Mas nada que uma boa propaganda não alivie.

Fabian.

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